quinta-feira, maio 08, 2008

De como as gentes se dividiram por várias partes do mundo e como Túbal, neto de Noé,
veio povoar nosso Reino de Lusitânia e fundou nele a povoação de Setúbal.

Divididos em várias partes do mundo os descendentes de Noé, conforme a primeira divisão que já tocámos, Túbal, filho de Jafet, com a gente de sua família, escolheu por habitação mui acomodada a seu gosto a parte mais ocidental da Europa, para onde se partiu com grande número de gente; e, dando no mar mediterrâneo, se meteu com os de sua companhia em algumas embarcações feitas a modo de galés, descobertas e de menos fábrica que as do tempo de agora, como parece sentir Josefo em suas antiguidades e Xenofonte no livro dos equívocos. Nestas piquenas fustas navegaram ao estreito de Gibaltar, onde, levados das correntes do mar e ímpeto das ondas, saíram, como refere nosso Laimundo, ao mar Oceano, da grandeza e imensidade do qual pouco satisfeitos, como gente que trazia inda nos olhos a cruel destruição das águas, se acolheram à terra, dobrando sempre sobre a mão direita, té que ja no fim de alguns dias, tendo já passada uma grande ponta de terra, chamada dos antigos Promontório Saghrado e dos modernos Cabo de S. Vicente, se acharam em uma fermosa baía, por onde se lança no grande Oceano Ocidental um rio, maior em proveitos de pescarias e navegações que em quantidade de águas.

Vendo Túbal o bom sítio da terra, e os que consigo trazia enfadados de navegação tão larga, determinou fazer naquele lugar seu assento; e, tirando das embarcações o que trazia, deu princípio a uma povoação e modo de República, ordenada com as brandas leis e pouco maliciosos costumes daquele novo mundo, fundando moradas de sua vizinhança de ramos de árvores, cobertas com o feno de campo, sem as soberbas suntuosidades que a malícia dos homens inventou no tempo adiante.

Aqui viveu Túbal alguns anos, com toda a gente de sua companhia, apacentando os gados em que tinham naquele tempo o melhor de sua riqueza, e dele se deu nome à nova povoação que fundara, chamando-lhe Setúbala, que, segundo o Viterbense, tanto significa como ajuntamento de Túbal, e Pompónio Mela a chama Dúbal, usando da muita semelhança e quase uniformidade que sempre tiveram e têm as letras D e T, de que os autores usavam algumas vezes sem nenhuma distinção.


Esta povoação é a que no tempo de agora, com mui piquena alteração do primeiro nome, chamamos Setúval, assaz conhecida no Reino de Portugal e muitos fora dele, pelo grande e seguro porto de mar que tem junto de si e pela cópia de fermosas canterias de jaspe e pórfidos finissimos, donde se levam para diversas partes do mundo.

Desta antiquíssima cidade fez o mestre Florião do Campo uma estendida narração em seu livro primeiro, confessando ser ela a primeira que em Espanha teve nome e figura de República ordenada, sem consentir que Túbal aportasse primeiro em Portugal que em Andaluzia; mas com dizer que desembarcou noutra parte atribue a Castela a glória de mais antiga, e Martim de Viciana, buscando modo para engrandecer sua pátria, trabalha por mostrar que a desembarcação destes primeiros povoadores de Espanha foi no Reino de Valença, cuja história ele compos, cheia de muita doutrina. Depois dos quais achou Garivai outras novas conjecturas, donde conclue que Biscaia foi a primeira região em que Túbal tomou terra e assentou morada. Mas, como tudo o que dizem traz mais fundamento em imaginações e subtilezas inventadas de bom juízo, que em fé e autoridade de livros antigos, não há para que aprovar nem contradizer nenhuma delas. Mas com eles próprios, que ao fim não podem fugir de força e autoridade que tem a tradição antiga, digo que nosso Reino foi o mais antigo na povoação e Setúval o lugar em que primeiro ordenaram modo de vivenda e vezinhança com uma.


Livro Primeiro da Monarchia Lusitana - Frei Bernardo de Brito

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