sexta-feira, julho 21, 2006

Desvaneios duma noite quente de verão

Após breve leitura de um pequeno livro de homenagem a Teixeira de Pascoaes pelos escritores da "Tertúlia "Rio de Prata", conheci, (re)vivi longinquamente, sem recordar em consciência, presenciar as sombras do Marão, a mátria-natura do Gêres, panteão de Deus, uma força única vinda do Alto e tão presente no baixo.
Nós ignoramo-lá; pior, marginalizamos a nosso própria essência, renegamos qualquer sinal manifestado, continuando a existir até à putrefacção da carne.
Diz o Espírito de Marânus, que "o homem existe, enquanto devia viver".
Definição precisa; o homem existe enquanto animal, pela sua condição de ser existente, mas logo que se extingue o suspirar, deixa de existir.
Contudo, nunca chegou a viver. Só a Vida tem capacidade de imortalizar o Ser, e não a existência. Já diz Fernando Pessoa:

"(...)
Vive porque a vida dura,
E nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz-
Ter por vida a sepultura."

Esta durabilidade da vida, trata-se da mera condição existencial do homem.
Talvez a fórmula de vivermos esteja contida nas sábias e metáforicas palavras de Agostinho da Silva, "não deveremos ter, deveremos ser".
Ser é viver "como", enquanto existir será viver "com" ou "sem". Talvez existir "com" a Natureza nos reserve um pouco de lembrança, de saudade de onde viemos, e nos abandone esta constante "saudade de ter Saudade" (Agostinho da Silva).

terça-feira, julho 18, 2006

Pequena lembrança de Teixeira de Pascoaes

Screvo
Morto-vivo,
Respiro ar
Mas não
Vivo,
Deixo-me
Existir
Disperso
Da Natureza
Que Marão
(A)guarda.

Fútil vivência,
A morte presença
Do esquecido passado
Escondido,
Perdido,
Ignorado,
Pelos mortos-vivos,
Homens nascidos,
Paridos
Cegos órfãos
Da Mãe-Natura.

Francisco Canelas de Melo

sexta-feira, julho 14, 2006

A Noite

Sepulcro repleto de pedras e de trevas
onde um rei chora perdidas rosas

A noite é um jardim de ossos
onde num banco de pérolas o corpo dia
tem os membros paralisados e frios
Só os olhos se movem

Ap longe o rei dorme por entre paredes de
hera, colunas de mármore azul
A noite é um arco, um ventre que conserva
o dia oculto
numa torre de brumas e de mistério

"Arte Régia" de António Cândido Franco

Teoria da Saudade

Na língua portuguesa há um certo número de palavras, altamente expressivas do que a nossa sensibilidade possui de mais íntimo e característico, e, por isso, sem equivalentes nas outras línguas.
Mas nós não conhecemos ainda uma célebre palavra, animada pelos dois princípios religiosos que definem a alma pátria.
Não precisamos de reunir vários sentimentos comuns dos portugueses, para com eles desenharmos o seu carácter moral. Conhecemos um que o define por completo. Refiro-me à Saudade.
Analisai-a e vereis logo os elementos que a formam: desejo e lembrança, conforme Duarte Nunes de Leão; gosto e amargura, segundo Garrett.
O desejo é a parte sensual e alegre da Saudade, e a lembrança representa a sua face espiritual e dolorida, porque a lembrança inclui a ausência duma cousa ou dum ser amado, que adquire presença espiritual em nós.
A dor espiritualiza o desejo, e o desejo, por sua vez, materializa a dor. Lembrança e desejo confundem-se, penetram-se mutuamente animados da mesma força vital e assimiladora; e precipitam-se depois num sentimento novo, que é a Saudade.
Pelo desejo e pela dor, a Saudade representa o sangue e a terra de que descende a nossa Raça.
Desta forma, aqueles dois ramos étnicos que deram origem aos povos latinos, encontraram na Saudade e, portanto, na alma portuguesa, a sua divina síntese espiritual.
A Saudade pelo desejo (desejar é querer, e querer é esperar), em virtude da própria natureza do desejo, é também a esperança, assim como é lembrança pela dor.
Pela esperança e pelo desejo, a Saudade é Vénus; pela dor e pela lembrança é a Virgem Dolorosa.
As duas Deusas confundem-se neste sentimento essencial dos lusíadas, originando um nova Divindade que é o símbolo vivo da alma pátria...

Teixeira de Pascoes

In "Arte de Ser Português", Renascença, Porto,
1915

domingo, julho 09, 2006

"Entre o que pensamos e o que escrevemos vai
aquele trágico e fecundo afastamento, que não
nos deixa escrever um só livro, mas muitos e
sempre, até que a morte suprima a distância
entre o corpo e a alma"

Leonardo Coimbra

segunda-feira, julho 03, 2006

BULBUL de João Carlos Raposo Nunes

BULBUL. Nome persa do rouxinol, e que na Índia é dado ao Lanius boulboul Lath., de que há variedades, de canto muito doce.
O Bulbul e o môruôni são a melodia das espessuras, dos palmares e arecais de Goa.
Alberto Osório de Castro in O Sinal da Sombra, 1923
É assim que se inicia esta excelente obra poética do Amigo João Carlos Raposo Nunes.
Amigo na plenitude total da palavra, Irmão no maior sentido da palavra de Irmandade e tudo o que ela abarca e Mestre, que tem a mestria dos Grandes, de ensinar não do Alto, mas junto de nós, partilhando num transmitir-receber...
Discípulo de Agostinho da Silva, foi nomeado pelo filósofo cidadão do mundo, Alferes da Pátria e Alferes do V Império.
Assim em jeito de singela homenagem transcrevo o prelúdio do Mestre Agostinho à obra citada:
IMPÉRIO SÃO FILIPE DO ESPÍRITO SANTO
Castelo Real
Setúbal-Portugal
A Arrábida espera. Deixamos por agora de considerar e falar do esporão de Palmela, pois dêle tem ido tomando conta Santiago, seu Senhor e Dono, e, como tem de ser, seu inspirador de futuro. Partiremos das arribas de Setúbal e veremos, como apoio e empurrão de largada, a um tempo o Grupo que Raposo Nunes tem congregado em sua Arca do Setubalense, e, como mais perto e excelente incitamento à empresa, o livro de Poemas sob o título de BULBUL ou seja o Rouxinol de Oriente, em que, num perfeito domínio da linguagem e de tôda a musicalidade exterior do verso, lhe dá equilibrado vertebrar a musicalidade interna de ver todo o passado como projecto futuro, de se tomar saudade como valente desejo a premonição de que virá tempo em que olharemos a Serra como triângulo para além da terra e à terra vinculado de que são extremos Europa, Ásia e África e em que nos ajoelharemos perante o Brasil, criação máxima dos Portugueses e modelo que se mostrará de todo o mundo a vir, de um mundo novo nem avaro nem triste; não esqueceremos o patrono geral, místico dos céus sem que o mundo esqueça, Frei Agostinho da Cruz, com sua cela de monte e sua gineta de companhia, nem esquecerei eu o trabalho de Orlando Ribeiro, o primeiro que, com sua implícita metafísica, pôs mais ordem no que se pensaria caos do que jamais fará o moderno progresso das fractais, em que matemática irá a domínios de que estava esquecida mas que felizmente nunca avançará bastante para que da vida desapareça o que a faz de interesse, isto é, o inesperado da verdadeira e suprema criatividade; não esqueceu ao Autor, sempre na melhor inspiração, olhar em Sebastião da Gama o sentido das viagens que se julgam impossíveis e o sacrifício na batalha que todos têm julgado desastrosa, mas que atravou os Turcos, firmou economia do Brasil e amparou em provações gente do outro lado do Atlântico; à Senhora do Cabo chegaremos e aí estará a recordação do génio analítico de Keil do Amaral ante o genético génio do Povo.
Por agora ficaremos em Setúbal, para que todos possamos discutir e entender neste Império, de que tem de ser Alferes Raposo Nunes, o canto do Bulbul, agora ave mesmo. O faremos pensando no Castelo que homenageou o Rei Filipe e faremos que desta vez perceba êle como é o Entre-Sado-e-Tejo a verdadeira Capital do que pelo mundo tenha tido semeadura ibérica. Não nos faltará a nenhum de nós audácia e reflexão: sabemos que a loucura só vale quando não nos falta o juízo. A tudo vamos, connosco venham.
Agostinho da Silva
Agosto 90
TÚBAL
Guardo o cantar do Bulbul
Como um segredo de séculos.
Da Índia à Arrábida
ausculto o piar da sombra.
A Nau da Saudade vem carregada de Lua.
Aberta a Arca do Ocidente
a luz emanada tem a forma
espectral da Ausência.
Avisto Cam, Sem e Jafé
a Arrábida é um triângulo
Europa, África e Ásia.
Ajoelho frente ao Brasil,
nu
no ponto mais alto da serra
à espera do homem de todo o mundo.
Nu
no prolongamento etéreo até ao regresso do Rei
insensível à vida e à morte,
pronunciando o Mantra: -«a liberdade é o próprio espírito»